ARTE MARCIAL
Em
tempos imemoriais, em todas as nações espalhadas pelo mundo foram desenvolvidas
técnicas de defesa e ataque para proteger os povos, seja contra as intempéries
ou animais da natureza, seja contra outros povos “hostis”. A este grupo de técnicas,
voltados para a proteção, envolvendo táticas de como se portar frente a uma
situação perigosa, é o que poderia se aproximar do conceito de arte marcial de
maneira bem geral. Não obstante tais ações sempre vieram acompanhadas de outros
rituais, tantos quanto são as imensas e infinitas diferenças culturais entre as
populações e grupamentos humanos ao longo da história.
Infelizmente,
com o decorrer do tempo muitas dessas sociedades foram, aos poucos, sendo
devastadas, através de guerras, invasões, ou pela imposição de outros costumes,
e junto com o “desaparecer” destes grupos foram perdidos também toda uma
riqueza de símbolos, costumes, maneiras de como interagir com a natureza, com o
homem, consigo mesmo, enfim, culturas foram exterminadas.
O
fato de algumas culturas de algumas sociedades prevalecerem sobre outras, e
mostrarem-se presentes até os dias atuais, não significa que são mais fortes,
ou foram selecionadas por algum “aparato da natureza” para mandar nas demais,
nem tampouco obra de alguma “força divina”, e sim devido a contextos
sócio-político-econômicos já bastante estudados pela historiografia e
sociologia (embora muitos fatos ainda precisem de esclarecimentos). Atualmente,
muito desses povos têm a oportunidade de viver e mostrar sua cultura de maneira
mais aberta (embora ainda exista em alguns países a idéia de “superioridade
cultural”, e a vontade em exterminar outras culturas).
Diante
dessa perspectiva, a arte marcial faz parte de uma característica de uma
sociedade, seja ela qual for. Porém, no ocidente, quando se fala em arte
marcial a primeira coisa que vem a cabeça ou são monges Shaolin ou Samurais, ou
ainda karatecas com seus trajes tradicionais. Talvez porque em nossa sociedade
pós-moderna, a necessidade de se defender contra ataques naturais ou humanos
foi legada a outras instituições (que não a família ou clã) como a polícia e
outras instâncias que as circundam. Daí a primeira coisa a se lembrar seja
aquela cultura, lá do outro lado do mundo, que há muito vem sendo exposta pelos
meios de comunicação de massa, e que parece praticar algum método de ataque e
defesa.
É
normal esse movimento do cérebro hoje em dia, já que as culturas tradicionais
foram solapadas para que hoje em dia exista a Unidade Territorial que forma um
Estado-Nação, ou País como conhecemos atualmente. Essa característica da
necessidade de defender-se foi relegada a outros que não nós mesmos. Isso não
significa que na China, Japão e outros países, não existam polícia ou outros
órgãos de proteção, mas essa população conseguiu escapar e resistir da extinção
de algumas práticas culturais de seu povo de sua origem ancestral, mesmo com o
advento da modernidade.
Portanto,
a partir disso poderemos aprender com esses distantes traços culturais
remanescentes (pois muito das nações antes fechadas, já se encontram bastante
modificadas pela influência do modo de vida encabeçado pela sociedade ocidental
moderna), como nos voltar para o passado de nosso território, em qualquer lugar
que estejamos, e enxergar o quanto injusto foi a derrocada de nossa raiz
ancestral e procurar valorizá-la e entender o seu percurso. Por isso tão
importante quanto as técnicas de uma arte marcial, são os princípios que regem
a prática, os quais geralmente se voltam para costumes, ritos e símbolos bastante
complexos, e que formam a rede sócio-cultural da sociedade a qual faz parte.
Antes
de serem técnicas e táticas de defesa pessoal, a arte marcial não menos é, uma
maneira de viver e de agir no mundo, e além disso, essa vontade de manter vivo
e resistir contra qualquer ameaça que queira destruir esse modo de vida.
Basta
olharmos para as sociedades tribais que existem no Brasil e em outras partes do
mundo (as que resistiram e resistem à vontade de extermínio e exploração de
muitas elites), que ainda se mantém um tanto quanto afastadas do nosso padrão
de vida, para notarmos o grande conhecimento dessa população sobre a anatomia,
medicina, política e técnicas guerreiras tão sofisticadas (considerando, é
claro, o contexto de atuação de cada cultura) quanto o de um exército ou força
policial no padrão em que conhecemos.
Talvez,
antes de se perguntar se o Taiji Quan é uma arte marcial, deveria se perguntar
o que é arte marcial. O nosso olhar para as artes marciais mais divulgadas no
mundo atualmente deve ser o de aprendizado, no sentido de reconhecermos a nós
mesmos, voltarmo-nos para nosso interior, tanto do ego, como da cultura que o
formou, e daí procurar nossas raízes e desmistificar qualquer disparate frente
a realidade.
TAIJI QUAN
Taiji
Quan é uma arte marcial chinesa que tem por base os princípios taoístas.
Traduzido para o português, o termo ficaria mais ou menos como “Técnica de punhos
da Extremidade Sublime”, tendo o conceito de Taiji (Supremo Sublime) muita
importância no desenvolvimento dessa arte.
Taiji
simboliza a união, a complementaridade dos poderes cambiantes e equilibrados do
Yin e Yang. Representa a fronteira de uma Consciência Una. O modo pelo qual o
Universo se manifesta com a interação entre o Yin e o Yang através do Qi, é
apreendido muitas vezes de forma dual e comparativa, e sugere uma mente
embotada e fincada em conceitos opostos e o apego a um desses lados, concebidos
por uma interpretação nesses moldes. A prática da meditação e do cultivo da
energia vital, voltando a mente para o interior e livrando-se do apego a
dualidade, proporciona o progresso da consciência e do espírito, de maneira a
transcender a forma, e atuar em um nível de integração maior, no nível da
Extrema Sublimidade (o próprio Taiji).
No
Taiji Quan esses princípios significam maior consciência, integrando corpo e
mente nos movimentos, além de trabalhar o sistema nervoso, alinha a postura,
aumenta o reflexo e a força utilizada nas aplicações de defesa pessoal,
fortalecendo ossos, tendões e músculos, e atua no sistema cardiovascular
equilibrando o fluxo sanguíneo, favorecendo o organismo de maneira global.
Diferentemente
de algumas artes marciais, o Taiji Quan, ao invés de fazer uso da força
muscular puramente mecânica e movimentos retilíneos, opta por movimentos
circulares e pela utilização de uma força que é gerada pelo pensamento
criativo, através da percepção, transformação e condução da energia interna ao
longo dos meridianos que percorrem todo o corpo com exercícios suaves,
alternando entre o relaxamento e leves contrações.
Em
conjunto com o conceito de Taiji, Ba Gua (Oito Trigramas), Xing Yi (Cinco
Elementos), o conceito de Yin e Yang permeia a filosofia, a estratégia e a
dinâmica dos movimentos dos exercícios de Taiji Quan. Portanto para praticá-los
é necessário entender como a constante mutação entre o Yin e Yang interfere no
movimento do corpo, da mente e da energia interna.
Há
duas correntes existentes hoje a respeito do surgimento do Taiji Quan na China.
Uma aponta para Zhang San Feng, por volta do século XIII d. C., embora nessa
mesma linha de pensamento haja autores que apontem para Xu Xuan Ping, que viveu
durante a Dinastia Tang (618-906 d. C.) como o responsável por desenvolver uma
técnica que recebia o nome Taiji. O mais importante nisso é que há um texto que
é atribuído a Zhang San Feng, onde ele descreve de maneira emblemática como
progredir na prática do Taiji Quan. Talvez seja por isso que ele seja
considerado como um dos pais fundadores do Taiji Quan, e muitas rotinas hoje na
escola de Wudang levam a alcunha do Mestre Zhang San Feng. A outra corrente
aponta para Chen Wangting, grande general chinês que viveu por volta do século
XVII. Após grandes vitórias servindo o exército chinês, Chen Wangting teria
regressado à Chen Jiagou e após muito estudar as artes marciais na prática e em
seu momento de retirada, teria alcançado tal grau de maestria que concebeu o
Taiji Quan, moldando alguns movimentos extremamente rígidos de outras artes
marciais para outros mais longos e suaves.
O
curioso é que, Zhang San Feng é considerado um personagem mítico, enquanto Chen
Wangting tem existência marcada, e chega a ter entre a maioria dos adeptos a
chancela de real inventor do Taiji Quan. O fato é que, Chen Wangting foi o
primeiro a nomear sua prática de “Taiji Quan” o que está registrado em alguns
de seus textos, porém, ainda hoje em Wudang existem várias escolas que outorgam
o surgimento do Taiji Quan a Zhang San Feng, ou pelo menos reconhecem este como
pessoa importante para o desenvolvimento e continuidade da arte, e alegam
pertencer à sua descendência marcial. Assim, também existem praticantes do
estilo Chen (estilo legado por Chen Wangting) que defendem a posição de
organização e divulgação do Taiji Quan.
Essas
são as principais idéias sobre a origem do Taiji Quan, porém se considerarmos o
taoísmo como uma filosofia de vida ancestral, ou seja, algo que remete a tempos
imemoriais; e considerando também, que o Taiji Quan é uma arte marcial que tem
por base a doutrina do Taiji, conceito essencialmente taoísta, logo pode-se
deduzir que o Taiji Quan existiu desde o momento em que o taoísmo se fez
presente, tempo este, mais antigo até que o Chen Wangting e o Zhang San Feng,
tempo que remontaria aos primórdios do taoísmo, tão antigo quanto Lao Zi (que
viveu mais ou menos durante o século VII ou IV a. C. – há divergências quanto a
precisão dessa informação). Pois com certeza, durante esta época, muitos
embates entre povos já eram presentes na China, e como se sabe, em sociedades
muito antigas (ditas “pré-modernas” por historiadores) o estado de divisão
entre o sagrado e o profano é praticamente inexistente, e esses dois aspectos
convivem de maneira a um corroborar o outro. Dessa maneira se o Taoismo existia
nesse período longínquo é fácil deduzir que o mesmo perpassava todas as instituições
sociais chinesas da época, inclusive as artes guerreiras.
O
fato é que a ciência reconhece o surgimento do Taiji Quan, a partir de sua
sistematização e organização, segundo os critérios da historiografia, mas antes
mesmo de sua organização por meio da transmissão familiar, o Taiji Quan era praticado
por muitos camponeses na China e até mesmo aplicado como treinamento marcial em
algumas guerras.
Até
sua sistematização através da tradição familiar, o Taiji Quan percorreu longo
caminho, porém não perdeu o elo com os seus princípios (salvo em alguns
períodos onde a necessidade de guerra e resistência fez “desaparecer”, ou pelo
menos diminuir, a ênfase no caráter espiritual) – que foram descritos logo no
começo. Pode-se distinguir com isso, o Taiji Quan desenvolvido nos templos e os
estilos familiares. O estilo desenvolvido nos templos recebe o nome de Wudang
(vale ressaltar que por mais que receba o nome genérico de Wudang esse estilo
possui diversas escolas e linhagens, como por exemplo, a San Feng Pai, Xuan Wu,
Long Men e outras), que é o mesmo nome dado as montanhas que ficam na província
de Hubei, famosas por abrigar diversos templos e preservar a cultura taoísta; e
os estilos desenvolvidos pelas famílias recebem o nome do patriarca (seguindo a
mesma lógica das linhagens de Wudang, talvez um indício de que realmente
descendem do estilo praticado nos templos) que fundou a prática dando uma
característica sua à forma e filosofia do Taiji Quan, são exemplos, a família
Chen cujo fundador foi o Chen Wangting; a família Yang com o Yang LuChan; a
família Wu/ Hao de Wu Yu-Hsiang; a família Wu de Wu Quanyou; a família Sun de
Sun Lutang; o estilo de Pai Lin com Liu Bai Ling, entre outros.
Por
maior que seja a diversidade tomada pelo Taiji Quan atualmente, seus princípios
permanecem intactos, dada a tamanha dedicação dos Mestres ao longo do tempo
para respeitar e transmitir seus conhecimentos de geração em geração, seja
através do laço consangüíneo ou não.